As alterações de perspectiva das indústrias de moda e beleza eram insurgentes já há alguns anos. No cenário de hoje, o que muda é a velocidade de adaptação para entregar produtos que correspondam a sentimentos voláteis e intensos de uma sociedade ansiosa e, em certa medida, com medo. Pela beleza, a revolução do skincare era encarada como linha num horizonte inevitável, mas a pandemia fez o caminho se estreitar e, não que as direções tenham mudado, mas alguns outros fatores foram incluídos nessa jornada. Afinal, qual papel dos cosméticos numa sociedade que há meses está em casa, mas em contrapartida passa o dia em contato com a própria imagem via Zoom?
Segundo relatório sobre impactos da pandemia na indústria de cosméticos da WGSN, as novas necessidades do consumidor miram em produtos “que permitam uma limpeza em movimento, proteção contra o coronavírus e remédios que neutralizem as consequências da intensificação da vida online”. Para a agência de pesquisa de tendências, essas novas percepções vêm remodelando rapidamente a indústria cosmética, de maneira literal dentro das necessidades, ou não. E eles têm razão.
Pela Simple Organic (@simpleorganic), marca nacional de clean beauty que traz em sua cartela produtos orgânicos, naturais e veganos o movimento foi de maior adesão às linhas de skincare, deixando a maquiagem – mesmo que com funcionalidades de tratamento – em segundo plano.
“Por ficarmos dentro de casa o mundo todo olhou para si no espelho, descobrimos os poros, questionamos o que estamos fazendo a respeito da própria saúde, tivemos mais tempo para entender e olhar para o corpo. Então o impacto é muito claro: essa mudança de comportamento, essa consciência e a busca pelo wellness”, conta Patrícia Lima, fundadora da marca.
Ela acrescenta ainda o aumento de novos consumidores não adeptos da beleza limpa em busca de informações sobre propriedades dos cosméticos e o impacto na saúde e no meio ambiente. “A gente retomou a comunicação inicial da Simple sobre explicar o que é cada produto e os conceitos pela chegada de um novo público que não ligava tanto para o consumo consciente ou wellness e descobriu a importância disso durante a pandemia”, revela.
Um pesquisa realizada pela McKinsey confirmou a percepção a nível mundial. No relatório há dados que mostram, por exemplo, um crescimento de 800% nas buscas por sabonetes de luxo na França, durante o mês de março (ápice da pandemia por lá). Enquanto a Zalando, maior marketplace da Europa, registrou um aumento de 300% entre produtos de autocuidado (englobando os segmentos de pele, cabelo e unhas). Contudo, mesmo com a busca em ascensão, as estimativas apontam uma desaceleração da indústria que apresenta, de acordo com a McKinsey, um decréscimo de 55 a 75% entre marcas de prestígio em especial no setor de perfumaria e maquiagem.
MAQUIAGEM PARA QUEM E POR QUÊ?
Com o panorama em mente, marcas reforçam iniciativas que atendam uma expectativa nova e promova mais interação com o público para que se mantenham relevantes. Na Quem Disse Berenice? (@quemdisseberenice) do Grupo Boticário a procura por produtos se concentrou, como era de se esperar, em linhas para os olhos, como máscaras de cílios e paletas de sombras, e também linhas de cuidados faciais com aumento da participação nas vendas da categoria. “O que podemos observar é que, sim, há uma alteração do consumo relacionado a essas alterações de comportamento e alterações na forma como as pessoas estão se conhecendo e se conectando. Mas acreditamos que ainda é cedo para ter uma percepção clara de padrão de consumo”, afirma um porta-voz.
Para a marca, que recentemente incorporou tecnologias de realidade aumentada e inteligência artificial para solucionar a compra digital da maquiagem, os produtos de beleza são essencialmente sensoriais e táteis, “a entrega desses sentidos é um forte condicionante na escolha de compra de cada cliente”, explica o porta-voz. Essas características, que revelam alguns empecilhos para a experiência de marcas, e junto de outros fatores relevantes a queda de vendas (por desistência ou adiamento), podem ser – de uma observação empírica e individual – o motivo pelo qual um grupo de pessoas vem se aventurando mais em técnicas novas em casa, mesmo com a queda no uso da maquiagem em si.
Para a maquiadora profissional e estetacosmetóloga, Josi Helena (@negravaidosa), a maquiagem se tornou um exercício criativo sim, mas para aquelas pessoas que já possuíam esse interesse no segmento antes. “A pessoas que têm esse prazer estão arriscando, porque tem mais tempo também. Ficam vendo na internet tutoriais, tem tempo de praticar”, conta. Com a publicação de mini tutoriais de automaquiagem, Josi viu o interesse crescer em soluções simples. “O que me pedem muito é uma maquiagem rápida e isso já vinha de antes, algo para se organizar para poder participar de uma reunião online. Fiz um reels e me surpreendeu como gostaram, uma maquiagem muito básica que você faz em menos de 5 minutos”, diz.
A crescente de conteúdos disponíveis com soluções para todos os gostos também é uma realidade que interfere nessa dinâmica. Conversando com a maquiadora e apresentadora Vanessa Rozan (@vanessarozan) ela comenta o fato da maquiagem e dos profissionais que estão no segmento dependerem deste contexto social para movimentar os negócios, como profissionais liberais ou dentro de salões de beleza. “Como todos essas engrenagens pararam, também não houve procura por maquiagem. Por isso muitos profissionais se reinventaram criando conteúdos online gratuitos e pagos, como forma de continuar prestando serviço, de seguir falando com seu cliente, seu público. E também de se sentir relevante, presente”, explica.
Mas Vanessa alerta, não basta seguir um ritmo irreal de conteúdo ou técnicas complexas, no fim das contas, o que vale é usar a sensorialidade da maquiagem como um momento de presença e conexão. “As pessoas querem conteúdo de qualidade, querem serviço e mais importante, querem interação, querem troca. Nesse sentido as lives foram (e são) jeitos de aproximar as duas pontas. Tendo isso em mente, criei conteúdos personalizados para as marcas com as quais já trabalho, sempre colocando a interação em primeiro lugar e aproveitando para conectar pessoas queridas e inspiradoras de qualquer parte do Brasil, ponto positivo dessa interação digital”, conta.
UM INÍCIO DE CONVERSA
Essa conexão por meio de assuntos em comum voltados à beleza é uma permanente quando abordamos as interações em páginas na internet. A falta de dinâmicas sociais e busca por entretenimento e compartilhamento vêm estimulando a troca dentro de assuntos como rotinas em casa. Álvaro Bigaton, criador do perfil Fera Macia (@fera.macia) no Instagram, sente que essa troca sobre produtos na realidade diz muito sobre o início de conversas que vão além da beleza. Com um alcance mais enxuto, ainda, Álvaro já revela que o interesse e a troca essencialmente tem crescido. “Eu sinto que de fato as pessoas têm ficado mais sensíveis a esse assunto, agora que estamos em quarentena. Justamente porque elas estão se enxergando mais, nas câmeras, nas calls. Acho que até é um início de conversa, porque não estamos vivendo muitas coisas, não estamos na rua; a gente está muito em torno do que consegue fazer em casa”, comenta.
Para a jornalista especialista em beleza, Vânia Goy (@vaniagoy) o movimento de isolamento social também trouxe uma crescente na página onde compartilha rotinas de bem-estar. “Senti um aumento na interação. Tenho conversado mais com leitores e sentido a troca mais intensa. Talvez seja um reflexo da distância dos amigos, colegas de trabalho e familiares com quem temos afinidades e com quem as conversas fluem naturalmente”, revela.
Vânia mensura uma dinâmica bifurcada de interesse dentro do recorte da sua audiência, onde os conteúdos são publicados em torno de rituais de presença e descompressão da rotina. “Sinto que as pessoas têm encontrado mais significado e pequenos prazeres nas rotinas que geralmente fazemos no automático. Tem o time que se maquia para ficar em casa porque esse ritual de beleza ajuda a sentir que o dia começou e trazer ânimo com cores e formas. Tenho recebido também muitos relatos de quem, ao contrário, simplificou a maquiagem e tem curtido os rituais de skincare, adotado massagens rápidas para relaxar”, explica.
MINHA PELE MINHA VIDA
E não há como competir. Rituais de cuidados, especialmente com a pele, popularizados pela terminologia em inglês, skincare, surgem como avalanche na transformação de interesse dentro da indústria cosmética. Unanimidade em nossas entrevistas, todas as fontes reafirmaram: o movimento tende a aumentar quando o conteúdo é voltado para cuidados e tratamento com a pele.
“Skincare e bem-estar sob uma perspectiva de gerenciamento de stress, de observação das emoções”, explica Vânia sobre a maior procura entre sua audiência. Pela Simple Organic, o feedback dos clientes indica esse caminho refletido nas vendas: “as pessoas estão se maquiando menos, porém cuidando MUITO mais da sua pele em todos os sentidos; tanto que essa semana que quando falamos sobre o autocuidado, o skincare foi encarado por um movimento como se fosse a principal ferramenta”, conta Patrícia Lima. Apesar de não concordar com o skincare como principal ou única ferramenta do autocuidado, Patrícia entende como o processo impacta na questão do alívio e momento de carinho e respiro nesse processo novo da sociedade.
Se comparado à maquiagem, os produtos de tratamento revelam um permanência de vendas muito mais sólidas e corroboram as tendências e números que mostramos no início da reportagem. E para Vanessa Rozan, o movimento da quarentena e o boom do skincare em detrimento de uma performance de beleza anterior trouxe uma perspectiva ainda mais interessante para o próprio universo da maquiagem. “As pessoas estão cuidando mais da pele. E descobrindo seus gostos pessoais independente do olhar do outro. Muita gente entendeu que maquiagem não é uma sequência de produtos aplicada mas sim um artifício para se sentir melhor, um jeito de levantar a autoestima para si mesmo, criando uma relação mais subjetiva com a maquiagem”, abre para nós.
DA CORREÇÃO À EXPRESSÃO
Em especial no segmento do público feminino, as alternâncias vêm ligadas a um movimento de observação sobre a função corretiva da maquiagem para adequação e o cuidado com uma autoimagem que leva em consideração o outro. “E não é à toa, as pessoas estão mais preocupadas com cuidados do que com maquiagem por que elas estão desapegando também”, comenta Josi Helena. Publicado em abril, o artigo do The New York Times, já trazia o questionamento: “se a feminilidade é uma performance, o que acontece quando ninguém está olhando?”. A partir da perspectiva da pressão social sobre beleza dentro do universo feminino, a coluna assinada por Ruth La Ferla conta a trajetória de libertação de rituais para adequação da mulher em âmbito coletivo.
O fortalecimento dos rituais voltados a cuidados, entre tantos outros fatores, parece estar fundando também nessa experimentação fora da ótica de padrões e democratização da beleza, uma busca pela performance do aspecto de saúde. “Várias amigas minha estão postando como está sendo para elas deixar o cabelo natural, por exemplo, a relação delas e das pessoas próximas com essa mudança. Eu acho que todo o mercado da beleza está voltado mais para o cuidado mesmo do que para a adequação estética”, compartilha Josi.
Para Vânia, a queda de atividades sociais da rotina trouxeram a possibilidade de descobrir por trás dos momentos da maquiagem percepções muito interessantes. Algo que antes era trivial como se olhar no espelho, segundo ela, passa a ser um momento de revelação, de achar incrível o que se enxerga por ali. “Acredito que não só o meu público. Sinto um desejo de sermos mais generosos conosco, menos preocupadas com o validação, perfeição e consumo e em busca de mais contentamento, prazer e identidade”.
Mas seja com uma iniciação precoce ou mais tardia no universo do cuidado e beleza, o alerta é para não transformar uma revolução em novos padrões. “Quando a gente fala da questão de autocuidado e das rotinas de skincare na Simple, tentamos falar muito para as pessoas terem cuidado em não buscarem uma pele irreal. Não cair num novo padrão de beleza em que a pele tem que ser praticamente sem poros, sem manchas, sem linhas de expressão”, comenta Patrícia sobre as políticas da Simple na divulgação das linhas de tratamento.
Recentemente, uma matéria sobre o movimento Pele Livre foi publicado pela revista Elástica, novo selo do grupo editorial Abril, pela jornalista Giuliana Mesquita. Por lá, ela aborda o movimento da adesão mais conscientes de características únicas da pele por uma corrente que empodera a autoimagem e a beleza não padronizada. Um link interessante para complementar nosso assunto de hoje.
Seguindo numa perspectiva otimista, os movimentos de expressão fragmentados por novas demandas de um público consumidor, encontram terrenos mais férteis hoje para se desenvolverem. Isso também pelo fato de que o maior compartilhamento sobre rotinas de cuidado revelam com maior ênfase imagens das pessoas com suas características descobertas de maquiagens e o uso dessa ferramenta como linguagem muito mais subjetiva. O próprio incentivo ao compartilhamento de rotinas auxilia na expansão do assunto para novos grupos que somam à percepção sobre beleza que podemos construir daqui para a frente.
“Eu acho que quando a gente começa a democratizar, para diferentes gêneros, diferentes sexualidades, diferentes expressões a gente começa a ter uma troca muito rica que transforma as coisas um pouco. Talvez seja cedo para dizer isso, por que eu acho que esse movimento é um pouco mais recente no mainstream, mas eu acho que existe um grande potencial da beleza se tornar uma coisa menos corretiva e mais expressiva, mais artística. É através dessa diversidade de discurso isso acontece”, conta Álvaro do Fera Macia.
gif da capa: Adrienne Raquel
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